Candomblé e Homossexualidade
CANDOMBLÉ E HOMOSSEXUALISMO
MARCELO MACEDO RIBEIRO
Resumo
A homossexualidade no candomblé tem sido tema freqüente entre antropólogos, sociólogos e historiadores. Sem a pretensão de defender as causas dessa ocorrência, o artigo visa a comentar algumas controvérsias e pontos em comum sobre esse fenômeno, a partir da visão de alguns pesquisadores, tomando por base a obra “A Cidade das Mulheres” de Ruth Landes, antropóloga que, entre 1938 e 1939, realizou pesquisas em Salvador tendo como fonte as casas de culto de origem banto.
Ruth Landes, no seu trabalho “A Cidade das Mulheres”, analisa o que ela chama de matriarcado cultual e homossexualidade masculina.
Limitando a sua pesquisa aos terreiros de origem ketu, considerados mais ortodoxos (“puros”), Landes verificou que a maioria das casas de culto era dirigida por mulheres. Jocélio Teles dos Santos, professor do Departamento de Antropologia/UFBA, menciona, no seu artigo “Homossexualidade e Candomblé” (10/12/2002), que Landes considerava os candomblés angola ou caboclos “deturpados por terem na sua maioria lideranças masculinas”.
A antropóloga relaciona o homossexualismo à questão social. O homossexual passivo, segundo ela, era tratado como um proscrito, ao passo que o ativo não era segregado da sociedade e muitos deles eram pessoas de classe social abastada. Ainda em relação ao homossexual passivo, Ruth Landes faz uma análise a princípio subjetiva quando os descreve como pessoas que “... se propõem nas ruas em sussurros obscenos e se fazem notar pelo exagero da fala, pela insistência no falsete, pelo uso de modismos femininos” (A Cidade das Mulheres, p. 284). Vai ainda mais além quando coloca que o objetivo final do homossexual passivo era a realização do ato sexual. A relação entre o homossexualismo, o candomblé e as questões sociais também foi tratada por Peter Fry, quando este atentou para a associação entre pessoas consideradas marginais na sociedade, a periferia e as religiões mágicas.
Jocélio comenta, também no artigo já mencionado, que “Patrícia Birman, ao estudar terreiros de umbanda e candomblés cariocas, investigou a vinculação da possessão masculina com a homossexualidade para argumentar sobre a criação de gêneros masculino e feminino nesses espaços religiosos”. Para Birman, no seu artigo “Transas e Transes: Sexo e Gênero nos Cultos Afro-brasileiros, um Sobrevôo”, “(...). Do ponto de vista dos homens, a possessão pode alterar também o papel de gênero, favorecendo a homossexualidade para os indivíduos do sexo masculino que desenvolvem esta modalidade de contato com o sobrenatural que atingiria a sua virilidade”. Birman afirma que a possessão “fabrica” mediadores com a esfera sobrenatural gerando efeitos sobre a natureza da pessoa em termos de gênero, “feminilizando-a” quando se trata de homens e “empoderando-as” quando se trata de mulheres, o que provocaria, em conseqüência, um permanente diálogo conflitivo dessas pessoas com a norma social e suas possibilidades de transgressão. Ruth Landes afirma que os sacerdócios nagôs na Bahia são quase exclusivamente femininos. “A tradição afirma, redondamente, que somente as mulheres estão aptas, pelo seu sexo, a tratar as divindades e que o serviço dos homens é blasfemo e desvirilizante”. As duas visões tratam respectivamente da possessão e do sacerdócio como elementos preponderantemente femininos. A partir dessa análise, poderíamos pensar com toda cautela, para não cairmos num determinismo, que o candomblé fortalece a figura feminina, fator fundamental e significativo dentro de uma sociedade historicamente patriarcal.
A obra de Ruth Landes foi intensamente criticada por Arthur Ramos. Para o médico e discípulo de Nina Rodrigues, não havia homossexualismo ritual ou religioso entre os negros no Brasil. Era coincidência alguns indivíduos homossexuais terem encargos religiosos. Para Roger Bastide, em sua obra “As Religiões Africanas no Brasil”, o grande mérito de Arthur Ramos era o seu anti-racismo e seu antietnocentrismo. Ramos trabalhava com a “relatividade das culturas”.
Em relação à oposição de Arthur Ramos à obra de Ruth Landes, Patrícia Birman argumenta: “As casas-de-santo foram tratadas por intelectuais como Arthur Ramos, Edson Carneiro e Roger Bastide, entre outros, como comunidades que, transpostas da África para as periferias ainda rurais das cidades brasileiras, preservavam de suas origens uma harmonia social e moral que era preciso, a todo custo, defender. Um pensamento politicamente correto, isto é uma defesa intransigente dessas manifestações africanas contra o estigma de que eram objeto, exigia que se reconhecesse a essas comunidades as mesmas qualidades morais asseguradas aos brancos e suas famílias. Recusar os argumentos de Ruth Landes de certo modo era enfrentar com as mesmas armas do adversário os ataques que, na sociedade inclusiva, se fazia aos cultos de possessão como lugares de curandeirismo e de feitiçaria, a serviço de indivíduos mal-intencionados”.
Edil Silva Costa, da Universidade do Estado da Bahia, ao estudar as formas da Literatura Popular no Estado da Bahia, comenta sobre o matriarcado no candomblé no seu artigo “Jogo de Espelhos: A Construção da Identidade Afro-Brasileira”. Em visita a um terreiro em Alagoinhas, interior da Bahia, Edil tomou conhecimento do conto de Logum Edé como justificativa para o homossexualismo no candomblé. Segundo ele, a exposição do conto surgiu da sua própria pergunta a respeito do homossexualismo nas casas de culto, elaborada a partir da afirmação de um pai de santo de que os homens passaram a ocupar cargos outrora ocupados exclusivamente por mulheres, devido à presença de homossexuais dentro da seita. Edil resumiu o conto: “Na antiguidade, na África, Oxum se juntou com Oxossi e tiveram um filho, Logum Edé. Após o nascimento do filho, se separaram. Logum estava muito novo e precisava do carinho, mas também da coragem e da astúcia do pai. Quando ele precisava do pai, saía das águas e encontrava o pai no mato. O pai ensinava ele a caçar, ensinava as folhas, toda a astúcia de como se alimentar e sobreviver, mas o pai não dava a ele aquele carinho que ele queria. Então corria para os beijos da mãe. Oxum jogava ele todo debaixo da saia, dengava, dava a ele tudo de bom, muito amor. Logum Edé é um menino que nas estripulias dele, um dia Oxossi disse a ele que não tocasse numa colméia; ele teimou e foi atacado por abelhas. Por isso Logum Edé tem quizila com mel e quando se vai dar comida a esse orixá não se pode usar mel. Quando esse orixá está tomando rum, ele dança colocando o pé direito no chão e trazendo em uma mão um ofá, uma flecha e na outra um abebé, um espelho. Assim, esse orixá tem características tanto de seu pai Oxossi, como de sua mãe Oxum, simbolizadas por suas ferramentas”. Para Edil, Logum Edé é o masculino e o feminino, não polarizados.
Retornando à obra de Ruth Landes, a autora coloca que o processo de iniciação ao qual são submetidos os meninos é igual ao das meninas. Os meninos são feitos em decorrência de, ainda antes do parto, terem sido prometidos ou, ainda, porque apresentaram alguma doença que tenha excitado a simpatia do deus de alguma sacerdotisa. Ruth Landes afirma que nos cultos caboclos há um afastamento da tradição nagô, na medida em que os homens podem tornar-se chefes do culto. Prosseguindo na sua análise sobre a participação dos homens no sacerdócio, Ruth Landes coloca que eles são recrutados entre homossexuais que habitam o submundo baiano. Mesmo nos cultos não nagôs, a autora afirma que só a feminilidade pode servir aos deuses, justificando que os homens considerados “normais” permaneciam excluídos do sacerdócio. Na sua visão, ainda permanece uma certa subjetividade quando classifica os sacerdotes caboclos como combativos e frustrados. Esses sacerdotes, segundo Ruth Landes, refletem a masculinidade da cultura patriarcal, mas, através do candomblé, podem satisfazer o desejo de serem mulheres. Ela trata ainda dos dois padrões de comportamento dos pais já estabelecidos: “...cultivam tipos diferentes de comportamento para o mundo do candomblé e para o mundo exterior. Limitam a sua feminilidade cada vez mais às ocasiões de culto e se esforçam, na vida secular, por imitar os atos dos homens. Esta conduta faz parte da psicologia de manter secretas as atividades da casa de culto”
Em relação ao comportamento dos sacerdotes no meio externo, vale comentar a explicitação de Reginaldo Prandi (Herdeiros do Axé, capítulo 1: Deuses Africanos no Brasil) sobre a necessidade do homossexual publicizar a sua intimidade. Esse fato demonstra, levando-se em consideração às colocações de Ruth Landes, uma situação de desconforto para o sacerdote. Segundo Prandi, “O homossexual, sobretudo o homem, sempre foi obrigado a publicizar a sua intimidade como único meio de encontrar parceria sexual, e, ao publicizar sua intimidade, obrigava-se a desempenhar um papel social que não pusesse em risco a sua busca de parceiro, isto é, que não pusesse em risco o parceiro potencial, um papel que o mostrava como o de fora, o diferente, o não incluído, mas que ainda assim não chegava a oferecer qualquer risco de contaminação do parceiro, que para efeito público não chegava nunca a mudar de papel sexual”.
Sobre o culto, Ruth Landes coloca que as “fantasias homossexuais passivas são realizáveis sob a proteção do culto, pois o homem dança com as mulheres no papel de mulher, usando saias e agindo como médium”. Acrescenta ainda que o homem utiliza estereótipos femininos nas danças profanas. Nina Rodrigues, segundo Jocélio Teles, registra a “concepção andrógina dos nagôs presentes no Brasil, por exemplo, na indumentária dos rituais, pois usava-se saias para os orixás masculinos e femininos”. Jocélio, porém, afirma que mesmo sendo Nina Rodrigues o cientista que apontava a bissexualidade de algumas divindades, não se encontra, na sua obra, nenhuma referência a homossexuais ou bissexuais de carne e osso nos candomblés baianos. Segundo Durkheim, não há religião sem culto. “O culto equivale à totalidade das práticas que concernem às crenças, ou representações mentais religiosas”.
Reginaldo Prandi (Herdeiros do Axé, capítulo 1: Deuses Africanos no Brasil) argumenta que no candomblé todos os adeptos exercem um cargo sacerdotal e que ninguém precisa esconder suas preferências sexuais, pode até “legitimar” a preferência, como se usa o orixá para explicar a diferença.
Bastide, segundo Sérgio Ferreti (Repensando o Sincretismo, p. 53), defende a idéia de que não existe uma religião afro-brasileira, mas várias. Nina Rodrigues, por sua vez, ao tratar do sincretismo religioso entre os deuses africanos e os santos católicos, apresentou, segundo Bastide, elementos exóticos das religiões afro-brasileiras, levando a uma confusão entre magia e religião. Reconhecendo o passado escravista e as dificuldades encontradas pelos negros à época da escravidão, como separação familiar, dificuldades para sociabilidade, pressão católica e convivência com grupos étnicos diferentes, o candomblé é resultado de uma “mistura cultural”. A ressignificação de valores afros, católicos e indígenas resultou nas religiões afro-brasileiras. Segundo Prandi, em obra já citada, “... fica evidentíssimo ser o candomblé uma religião brasileira muito mais que a simples reprodução de cultos africanos aos orixás como existiram e como existem além-mar”.
Tanto Prandi quanto Ruth Landes enfatizam a proximidade do candomblé com as comunidades mais carentes. Portanto, além de ser uma religião que proporciona ao homossexual desfrutar de liberdade, proporciona também, aos menos favorecidos socialmente conviver num ambiente menos desigual. Segundo dados do ESEB 2002, 77.3% dos integrantes das religiões afro-brasileiras têm uma renda mensal de até dois salários mínimos; enquanto apenas 9.1% têm uma renda acima de seis salários mínimos.
Mesmo que polemizar não seja o objetivo deste artigo, é interessante trazer à tona alguns dados que constam no artigo “Evangélicos no Brasil. Perfil socioeconômico, afinidades ideológicas e determinantes do comportamento eleitoral”, da cientista política Simone Bohn (Opinião Pública, Campinas, Vol. X, nº 2, outubro, 2004, p. 288-338). A autora busca, através de dois temas - o aborto e o homossexualismo - avaliar o grau de conservadorismo de alguns religiosos. Em relação ao segundo, a autora fez a seguinte constatação após consultar os entrevistados sobre ser contra ou a favor da veiculação hipotética de um programa de televisão que defendesse o casamento entre pessoas do mesmo sexo: “Consoante com sua visão marcadamente negativa a respeito do homossexualismo, os evangélicos se mostraram, em sua maioria (79,1%), favorável à proibição do referido programa. Entre os católicos foi de 63,4%. (...) Assim, apesar de cerca de 59% das pessoas sem vínculos religiosos considerarem a escolha sexual como objeto da liberdade individual, 52.2% delas mostraram-se dispostas a proibir a veiculação do programa. Entre os adepos do candomblé e umbanda, o mesmo ocorre: 50% deles não vêem o homossexualismo negativamente, mas 68.2% deles são contrários à divulgação do programa”.
Reafirmando que este trabalho não oferece subsídios para discutir acerca dessa posição um tanto preconceituosa de uma parcela de integrantes do candomblé e da umbanda, os dados acima podem servir para futuras reflexões, levando-se em consideração que os autores citados neste artigo consideram o candomblé como uma religião capaz de oferecer efetiva liberdade aos homossexuais. Para Reginaldo Prandi, o candomblé libera o indivíduo e libera o mundo. Vale ressaltar, porém, que Prandi coloca que “o homossexualismo não é prerrogativa nem do candomblé nem de nossa civilização”. Patrícia Birman trabalha com a idéia de transgressão. Segundo ela: “Espaços de afirmação de uma religiosidade cada vez mais periférica, os cultos de possessão colocam em relevo, como podemos depreender desses trabalhos, identidades sexuais e de gênero que transitam entre a adesão à norma sexual e de gênero dominante a sua transgressão, afirmando, apesar de todos os conflitos, as hesitações e as dificuldades de ‘outros mundos’ são possíveis”.
A relação entre candomblé e homossexualismo é extremamente marcante. As religiões afro-brasileiras possibilitaram historicamente a convivência entre as chamadas minorias. Para os negros, não significou formar apenas um novo espaço para práticas religiosas, mas foi também uma alternativa de reconstrução familiar. O candomblé permite um comportamento desvinculado de uma determinada ética religiosa, fator que, se não é determinante, colabora para que se tenha mais espontaneidade e menor restrição às opções sexuais ou à livre expressão. Reginaldo Prandi comenta que: “O candomblé pode ser a religião ou a magia daquele que já se fartou da transcendência despedaçada pelo consumo da razão, da ciência e da tecnologia e que se encontrou desacreditado do sentido de um mundo inteiramente desencantado – e o candomblé será aí uma religião aética para uma sociedade pós-ética”. Os cultos também têm um papel preponderante, já que possibilitam a manifestação do desejo homossexual.
O candomblé, fruto de uma ressignificação de valores religiosos europeus, africanos e indígenas, é claramente uma religião brasileira. Portanto, reflete as necessidades e os desejos de uma sociedade que foi construída de forma desigual e preconceituosa.
Referências Bibliográficas
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo. Pioneira. 1985.
BIRMAN, Patrícia. Transas e Transes: Sexo e Gênero nos Cultos Afro-Brasileiros, um Sobrevôo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 13 (2): 403-414, maio-agosto/2005.
COSTA, Edil Silva. Jogo de Espelhos: A construção da Identidade Afro-Brasileira. Revista Eletrônica, UNEB.
FIGUEIREDO FERRETI, Sérgio. Repensando o Sincretismo. São Paulo. Edusp.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 2002.
PRANDI, Reginaldo. Herdeiras do Axé. Hucitec.